quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Os monólogos da ADUnB; a propósito do REUNI

Michelangelo Giotto Santoro Trigueiro
(prof. de sociologia da UnB)

Estive na última assembléia convocada pela Associação dos Docentes da Universidade de Brasília – a ADUnB. Cena patética. De um lado, uma diretoria esforçando-se para explicar que a retirada da parte da GED de nossos contracheques (por si só) não justifica uma greve nacional dos docentes de universidades públicas – “não dá para fazer parte de uma pauta nacional”. De outro lado, uma ansiedade contida (percebida em muitas falas), frustração e muita revolta entre os colegas que ali estavam. Numa frase: um grande desconforto entre muitos de nós; “um sentimento de orfandade política”, teria me soprado um colega, ao final. De fato, cabe a pergunta: além da atuação jurídica prestada até agora pela ADUnB, quem poderia nos defender, politicamente, nesse sinistro em nossos salários? Pergunta que não quer calar, quando, assustados, ainda somos surpreendidos, lateralmente – sim, pois o assunto é quase tangencial, sendo, por mais paradoxal que pareça a idéia, central para nosso destino como professores da UnB – pelo assunto da moda.

Refiro-me, agora, ao chamado REUNI, programa do atual governo federal para a “Reestruturação e Expansão das Universidades Federais. Uma iniciativa do MEC que deverá contar (salvo alguns problemas de percurso), já em seu primeiro momento, com a adesão da Universidade de Brasília. Em que pesem suas altissonantes metas para ampliação do acesso ao ensino superior no país – no segmento das instituições públicas –, uma causa há muito defendida por professores e por diferentes correntes ideológicas, e para a redução dos elevados níveis de evasão – a idéia, também por muitos compartilhada, de melhoria da eficiência na gestão acadêmica e institucional das universidades públicas –, todo o mais é mera reedição de antigas políticas do MEC, da época do governo de FHC (o Edital para as “Novas Diretrizes Curriculares” de 1997); uma cópia mal feita, a meu juízo, de conceitos anteriormente propostas ao mundo acadêmico, como os de “flexibilização curricular”, entre outros. Nenhuma novidade, a esse respeito, no REUNI. Visto por uma outra ótica, essa proposta do MEC, nada mais é que o sucedâneo do que ficou conhecido, no meio acadêmico, como “Universidade Nova”.

Na verdade, numa leitura atenta, o REUNI é, fundamentalmente, a proposta “Universidade Nova” acrescida dos recursos prometidos pelo MEC a quem (dentre as universidades federais) aderir à citada proposta, na condição de se comprometer com o aumento nas taxas de oferta de vagas. Penso que este último objetivo é, essencialmente, o foco do REUNI. O resto (por exemplo, a reestruturação curricular e assim por diante), é mero apêndice. Mesmo a referência, recorrente, à expressão “qualidade” do ensino ganha mais um tom puramente retórico, no documento, que pragmático; tampouco fica claro como deveria ser garantida tal qualidade, e em que momento, antes ou depois dos recursos chegarem (nas situações em que uma ou outra instituição resolver aderir ao programa), uma vez que as condições atuais de salas de aulas e de laboratórios (incluindo-se fortemente a UnB) são de grande penúria, para dizer o mínimo.

A esse respeito, por que o MEC, atento a esse problema, que também envolve os hospitais universitários, não se antecipa e atende, com novos recursos, a tais urgentes necessidades? Por que esperar (ou condicionar) que a instituição participe do Programa, comprometendo-se a aumentar sua oferta de vagas, para reparar um gritante problema, percebido em nosso cotidiano? Do modo como está posto o assunto, a impressão que dá é a de uma chantagem institucional. Numa situação como a que nos encontramos, hoje, no que concerne às condições de trabalho do docente, o REUNI não é um alívio, e também nenhuma novidade. Precisamos de mais recursos e não temos como expandir vagas, sem termos claro o impacto disso tudo, no momento em que se decidir nesse sentido. Todos sabemos que reformas curriculares ou, mais ainda, a reestruturação da “arquitetura do ensino superior”, não é algo que se possa fazer “a toque de caixa”; embora seja assim que o assunto esteja sendo conduzido, internamente, na Universidade de Brasília.

A propósito, o REUNI tem propiciado, na UnB, um curioso alinhamento político-institucional, entre os apoiadores do PT e os do atual reitor de nossa instituição (o professor Timothy Mulholland, que não dá aula, pelo menos, a 14 anos).

Claro, cada um tem o direito de escolher seus representantes. Temos, no governo federal, um que disse nunca ter lido um livro na vida; na UnB, um que não dá aula a pelo menos 14 anos.
A questão não é esta, embora seja importante a premissa, mas saber quem são de fato nossos interlocutores, no momento. A ADUnB acaba de convidar a comunidade para um evento, uma palestra, ao que entendi, para discutir o REUNI. Também nada contra o prezado colega da física, que fora convidado para tal exposição, pessoa de grande compromisso com a UnB e com os ideais de universidade pública. Mas contra, sim, o formato do evento. Uma palestra? Não é o momento de expor controvérsias, de sondar a diversidade de informações e reações a essa proposta do MEC? Por optar por um formato distinto para o citado evento, que tende a limitar a participação ampliada de diferentes entendimentos sobre o tema (ao contrário, por exemplo, de uma “mesa redonda”, ou algo no gênero), num momento crucial como este, de muitas ansiedades, precariedade de informações e estratégias autoritárias de condução da política acadêmica (refiro-me, aqui, à ação da reitoria da UnB), que estabelece prazos exíguos para o aprofundamento de tema de tão grande impacto em nosso dia a dia (assim como a retirada de parte de nossa GED), corremos seriamente o risco de transformarmos o movimento docente, apenas, no exercício inconseqüente de um monólogo.

Para muitos de nós, docentes, a construção de uma pauta nacional para nossas reivindicações não deve ser o único eixo ou estratégia de luta. Mesmo porque temos questões tão específicas, como as que dizem respeito a nossa inserção no REUNI (até onde sei, não mais que meia dúzia de instituições federais deverão aderir num primeiro momento ao programa do MEC), e a do vergonhoso episódio da perda em nossos contracheques, além das contínuas queixas de roubos, da precariedade das condições atuais do ensino (em meio a um espetaculoso canteiro de obras na UnB), e dos problemas decorrentes da falta de professores e de técnicos para fazer frente a crescentes demandas do ensino, da pesquisa e da extensão.

Como podemos encaminhar, na UnB, esses assuntos? Quem poderá nos escutar?

A julgar pelo que temos presenciado, estamos muito mal. Entre a escolha de aderir por falta de alternativa ou de “deixar levar até ver como vai ficar”. O problema é que o preço por seguir por uma ou outra dessas duas alternativas pode ser muito caro, num futuro não muito distante, para quem escolheu, antes, a vida acadêmica como razão de viver.

Deseducando o Brasil

por: Marcelo Hermes-Lima
(escrito em fevereiro de 2007)

Professor de Bioquímica Médica, Universidade de Brasília.
(E-mail: m_hermes_lima@yahoo.com.br)
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Temos escutado dos governos, e oposições, que o Brasil tem pressa de chegar aos patamares sociais do primeiro mundo. Ninguém é contra o conceito de que apenas com educação poderemos crescer como nação. Assim, se uma pessoa desavisada olhar o número de brasileiros que concluíram cursos de graduação nos últimos anos ficaria maravilhado. Entre 1990 e 2002, o número de formados, por ano, aumentou de 230 mil para 466 mil (http://www.ricyt.org/), tendo aumentado ainda mais em 2006. Estaríamos, enfim, na trilha educacional da Coréia do Sul? (ou da Irlanda ou da Espanha?)
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Durante o governo FHC, o MEC iniciou um trabalho, que, naquela época, foi controvertido. Deixaram que o mercado de ensino superior se auto-regulasse. Isso fez com que o número de instituições de ensino superior (IES) aumentasse de 800, em 1998, para 1.859, em 2003, com 3,8 milhões de alunos. Em agosto de 2005 já tínhamos 2.308 IES, e, em outubro de 2006 já eram 2.402 (89% privadas). Em Brasília, as IES aumentaram de 9 para 83 em dez anos.
Porém, um diploma de uma “Faculdade do Diploma Fácil” (FDF, incluindo departamentos de IES privadas ou públicas) tinha um valor-de-mercado menor que o de uma “Faculdade do Diploma Merecido” (FDM – sejam públicas ou privadas). E como o mercado saberia disso? Através das notas que o MEC dava às faculdades de cada IES: conceitos A, B, C, D e E. Portanto, se você paga pelo ensino, optaria por uma FDM (conceitos A ou B), não? Um empresário preferiria contratar um diplomado por uma FDM. Era um sistema simples e efetivo.
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Participei da avaliação exaustiva de um curso de Biologia em Goiânia, em 2000. Nossa equipe deu B para tal curso. Ao final do trabalho, os diretores desta IES particular (uma FDM) ficaram contentes com o B e se comprometeram a atingir A. Iriam contratar mais Doutores e dar mais horas (pagas) de pesquisa aos docentes. Estávamos, a meu ver, num bom caminho.
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Entramos no governo Lula. Uma das primeiras medidas adotadas pelo MEC foi “transformar” o sistema de avaliação. Acabou com os conceitos (A, B, etc) e passou a recomendar ou não as faculdades. Existem hoje 4 conceitos, mas que são de auto-avaliação institucional. O “provão” deixou de ser anual e obrigatório para todos os alunos, de todas as IES, e passou a ser um sistema que envolve amostragem de alunos, e que nem é anual. Não seria melhor usar o IBOPE para saber da qualidade das faculdades? Francamente!
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Além disso, em 2005, o MEC passou a exigir menos Doutores ou Mestres nos quadros docentes. A legislação atual não obriga a presença de Doutores nas IES particulares, bastando um percentual de Mestres OU Doutores. Para que serve um Doutor, com melhor salário, se um “bom” professor, formado por uma FDF pode dar o recado por muito menos custo?
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Por causa disso, centenas de professores Doutores ou Mestres foram demitidos em todo o Brasil (denunciado pelo Estadão, em junho de 2005). Muitas IES praticamente pararam de exigir exames-de-verdade de ingresso. Há casos de pessoas que nem fizeram as provas, só se inscreveram, e foram aprovados! O nível das aulas, e dos alunos, despencou. Muitos professores são orientados pelos diretores das FDF que os alunos são clientes, e logo não devem ser reprovados. Isso é um grande desestímulo para Mestres fazerem doutorado.
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Uma vez, ouvi de um biólogo, formado numa FDF local, que se uma célula fosse do tamanho de uma casa, seus átomos seriam do tamanho dos quartos! Na verdade, nesta comparação, seriam menores que uma pulga. Uma colega professora, de uma FDF paulista, ouviu estarrecida de um formando de Química que elétrons eram reduzidos (sic) em uma reação química (um descalabro total). Eu mesmo presenciei um formando em Farmácia que não tinha idéia de como preparar uma solução salina! Outra vez ouvi uma nutricionista (formada numa FDF) recomendar dietas ricas em ômega-3 e, que evitasse as gorduras trans. Porem, ela não tinha a menor idéia sobre o que seriam “tais substâncias”. Um colega meu, docente de uma FDF, teve que aprovar (sob ameaça de demissão) alunas na prova de bioquímica, sem que elas soubessem a diferença entre gorduras e açúcares! São centenas de casos tragicômicos - um vexame educacional.
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Mas por que isso está acontecendo? Porque, com o fim das exigências para se obter conceitos A, B, etc., o mercado ficou sem parâmetros (exceto pela massiva publicidade das FDF!). Os próprios alunos não sabem mais o que é uma IES boa ou ruim. O empresário que vai contratar um contador, por exemplo, não sabe também. Saberá quando descobrir que ele não sabe conta de multiplicar!
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Com tudo isso é possível, hoje, haver bacharéis em Direito semi-analfabetos. Deixando hipóteses extremas de lado, o fato é que – por exemplo – é cada vez menor a percentagem de bacharéis que passam no exame da OAB.
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O modelo de educação superior privada criada pelo antigo governo funcionava, pelo menos em parte, avaliando os cursos. Muitos cursos foram ameaçados de fechar. Mas como o MEC mudou de administração, quase tudo terminou. Não monitorar a educação pelo estado, é como deixar de regular os medicamentos vendidos nas farmácias. Na maioria dos paises da OECD, há uma pesada mão do estado monitorando a educação superior. Eles sabem do valor sócio-econômico da educação de qualidade.
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Obs: Colaborou com o texto a Dra. Carolina Arruda Freire, Profa. de Fisiologia da UFPR.
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Perfil do autor (em fev/2007):
Carioca, 41 anos, Doutor em Bioquímica pela UFRJ (1991), com pós-doutorado no Canadá.
Professor do Depto. de Biologia Celular, Universidade de Brasília (UnB) desde 1996.
Orientador de cinco cursos de mestrado e doutorado na USP e UnB.
Pesquisador com mais 50 trabalhos científicos publicados no exterior e mais de 1000 citações científicas.
Primeiro brasileiro a ser co-autor de livro-texto internacional de bioquímica.
Co-editor do periódico canadense Comparative Biochemistry and Physiology.
Consultor ah hoc do IFS-USA, CNPq, FAPESP, CAPES e de 19 periódicos científicos internacionais.
Áreas de atuação: Pesquisa em ensino médico; sócio-economia da inovação; bioquímica de radicais livres.

Literatura
C.A. Martins . Ensino superior. Acertos e desacertos na proposta de mudança. Revista Ciência Hoje, vol. 36, pp 28-32, abril de 2005.

D. Davidovich. Ensino superior no Brasil. Desafio para o século 21. Revista Ciência Hoje, vol. 36, pp 22-27, abril de 2005.

M. Hermes-Lima, C.A. Navas. The face of Latin American comparative biochemistry and physiology. Comparative Biochemistry and Physiology C 142: 157-162, 2006.

RICYT—Red Iberoamericana de Indicadores de Ciencia y Tecnologia. El Estado de la Ciencia. Site: http://www.ricyt.org/interior/interior.asp?Nivel1=6&Nivel2=5&IdDifusion=19

INEP, Ministério da Educação. Site oficial: http://www.educacaosuperior.inep.gov.br/inst.stm (consultado em agosto de 2005 e 24 de outubro de 2006).

Agencia Fapesp: http://www.agencia.fapesp.br/boletim_dentro.php?id=6236