quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Arautos e incautos

Michelangelo Giotto Santoro Trigueiro
Prof de Sociologia da UnB
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O presidente Lula, em quase toda grande solenidade, numa inauguração ou num lançamento de um Programa de governo, costuma dizer que “nunca antes na história desse país”...e por aí vai em seu discurso. A bem da verdade, essa sua frase jamais se aplicaria à condução da economia. Todos nós já o sabemos. A esse respeito, a maioria dos “especialistas” acaba concluindo: “é... não há muito que inovar nessa área... numa economia globalizada... os mercados estão muito integrados... e coisa e tal...”. Muitos de nós acabamos embarcando nessa conversa fiada (em que pesem seus encantos; afinal, o próprio Ulisses, para não ser seduzido pelos cantos das sereias e sucumbir a seus encantos, precisou ser preso à proa de seu navio, diz-nos a literatura). O resultado final, somando todas as opiniões e práticas diárias, é que, desse modo, aceitando as “verdades inquestionáveis”, acabamos por consagrar o chamado “pensamento único”. Um estilo e uma lógica de argumentação, denunciada, por exemplo, por um conhecido sociólogo, Pierre Bourdieu, que morreu antes de ver o revide da sociedade. Também nada de muito novo nessa denúncia, assim também o fizera Herbert Marcuse, em sua conhecida análise sobre o “homem unidimensional”, ao apontar a hegemonia da tecnocracia, do pensamento analítico totalitário, em detrimento da dialética, e do que chamara o “pensamento negativo”.
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Nessa linha de questionamentos, expresso, aqui, minha preocupação com a forma como o REUNI foi concebido pelo MEC e vem sendo conduzido em algumas universidades públicas, entre estas a UnB.
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Primeiramente, denuncio a falácia da “fórmula salvadora” do ensino público superior, presente nos discursos oficiais a esse respeito, seja por parte do MEC, seja por parte, no nosso caso, da UnB. Também aqui o assunto ganha ares de inevitabilidade, de algo contra o qual nada se pode fazer, ou que não há nada melhor em seu lugar. Em suma, o tal do pensamento único, reeditado nas páginas da pasta da educação brasileira. Ou seja, também aqui, e não só na economia, o governo federal não pode dizer “nunca antes na história desse país”..., e falar do REUNI. Mesmo se falasse do PROUNI – aquele programa federal que transfere recursos públicos para as instituições particulares de ensino superior, na forma de bolsas de estudo para estudantes carentes (o canto de sereia do programa).
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Tanto a respeito do PROUNI, quanto a respeito do REUNI, penso que o ex-ministro Paulo Renato, do governo de FHC, assinaria, literalmente, embaixo. Vale lembrar que Paulo Renato durou bastante tempo no MEC; como também o atual ministro Fernando Haddad. Numa área historicamente conturbada, disputada, instável, do ponto de vista de quem a dirige. Tenho uma hipótese. Ambos dizem, fundamentalmente, a mesma coisa, e ambos atendem, basicamente, aos mesmos e hegemônicos interesses, os do setor privado da educação brasileira. Em se tratando da educação superior brasileira, isso é muito evidente. Basta olharmos a proposta do REUNI, sua idéia de flexibilização curricular, a de formação mais curta (bacharelados em 2 ou 3 anos), a lógica quantitativista da expansão, em detrimento da discussão da qualidade, e assim por diante. Não é preciso muita habilidade para encontrarmos essas impressionantes semelhanças entre ambas as políticas.
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Mas, se na economia o exercício da controvérsia é absolutamente necessário, pois a história é feita de movimento, de diferentes possibilidades, de contradições, como querem alguns filósofos, que diria, então, na educação, que lida com a formação dos indivíduos.
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Penso que, a esse respeito, o que está por trás desses arautos são suas inconfessáveis disposições para viabilizar os interesses do segmento privado da educação superior brasileira, às expensas de um projeto, menos inconfessável ainda, de sucateamento do segmento público. Fato semelhante ao que acabou ocorrendo, ao longo de algumas décadas, com o antigo ensino primário e secundário; antes, de excelente qualidade, no segmento público; hoje, as referências são as escolas privadas.
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A história, a meu ver, é mais ou menos a seguinte. A expansão das vagas pelo segmento das instituições privadas, num primeiro momento, cumpriu sua etapa – tendo começado com a gestão de Paulo Renato (aquela abertura indiscriminada de cursos superiores, país afora), e, agora, continuada, com o PROUNI – um esforço para socorrê-las das inadimplências. Esse ciclo se encerrara. O mercado estaria saturado; não haveria mais como expandir, por esse caminho; não haveria mais quem quisesse ou pudesse pagar por serviços tão caros (a inadimplência é grande e também a evasão), e não há bolsas suficientes para tanto mais. Restou o que chamo a fase 2: esgarçar as universidades públicas, de tão combalidas que estão, para introduzir o novo projeto expansionista. Nas condições atuais, poucas resistências poderiam oferecer, muitos supõem.
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Mas, expandir as matrículas pelas vias das universidades públicas? Seria então uma mudança de rota do projeto anterior? Uma nova política? O PT, enfim, mostraria a que viera, no setor da educação? Não. A história é a mesma. O enfraquecimento da qualidade do ensino público, para que só reste a alternativa do setor privado. E aí, os filhos das elites, dos que mais podem economicamente, acabariam por migrar, definitivamente, para as universidades particulares. Tanto melhor para os donos das instituições privadas: “sangue novo”, gente que pode pagar, que não atrasa, que não é inadimplente. Para esses arautos, a qualidade estaria, enfim, nas mãos das particulares. O segundo ciclo estaria concluído.
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Mas que história difícil de engolir, diriam muitos. Eu confesso que não desejaria, por nada, pagar para ver tais fatos chegarem a termo. Não gostaria de fazer parte da geração que assistiu, inerte, a esse desmonte; ao que se poderia chamar, num futuro próximo, a favelização acadêmica das universidades públicas brasileiras.
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A luta é árdua. Até porque, no plano interno, em nosso caso, na Universidade de Brasília, o MEC conta com poderosos aliados. Na prática, internamente, essa política vem sendo seguida fielmente, obedecida em seus mínimos detalhes. Porém, teríamos muitas outras alternativas (e, creio, também as políticas do MEC para as universidades públicas), se assim o quiséssemos.
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Por exemplo, começar com um grande inventário do quanto se arrecada (em todas as consultorias, cursos de especialização e serviços, os mais diversos, “rubrica a rubrica”) e apresentar, publicamente, como esse dinheiro flui, internamente, para reavaliar determinadas políticas de alocação de recursos. Da parte do MEC e da UnB, isso significaria dar um basta na farra dos CNPJs (um artifício criado para triangulações e captação de recursos de “forma mais ágil”, usando várias unidades e centros das Universidades, não somente suas fundações, em consultorias privadas, cursos de especialização e por aí vai). É preciso colocar ordem e transparência, urgentemente, nesse terreno, que acaba por favorecer os interesses privatistas internos e externos. Em segundo lugar, ou talvez antes mesmo do proposto anteriormente, que se proceda à imediata recuperação das condições de trabalho e a reposição de quadros docentes e técnicos, com salários dignos. Isso é urgente e inadiável: investir em salas de aula e laboratórios, e nas condições de infra-estrutura, de todo o tipo. Por que, então, não fazer, o quanto antes? Por que segurar vagas para novos concursos públicos? Sinceramente, não entendo por que isso tudo não é assumido, pelo MEC e pela UnB, como a política; antes de qualquer outra. E qualquer outra teria passar, necessariamente, por maior participação, democracia, controvérsias. São antídotos ao pensamento único, que, embora aparentemente sem dono (“é de todos”), certamente o tem. Neste caso, são as instituições federais de ensino superior.
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Há muito que o PT perdeu seu “glamour” ideológico e programático, em favor de uma política pragmática, de resultados, de votos. Também esse é mais um elemento de aproximação com a atual reitoria da UnB. Esta, se bem que nunca demonstrou suas reais opções pedagógicas ou filosóficas, para pensar o futuro da instituição, também adere ao plano do meramente pragmático: o do dinheiro (digo, dos recursos) e do voto.
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Contra essa corrente, em nosso caso, nada é mais urgente que a luta intransigente pela garantia e melhoria da qualidade do ensino e da prática acadêmica. Os incautos que nos perdoem, mas a história não nos livraria da condenação pela omissão.

Um comentário:

obsuni disse...

Muito bom o texto, convido o autor a entrar no blog observatoriodauniversidade
http://observatoriodauniversidade.blogspot.com/


para ler outras matérias sobre o REUNI.