terça-feira, 29 de setembro de 2009

Doce açucar: uma amarga ilusão

Texto baseado na reportagem de capa de Veja da semana passada, com o título AÇÚCAR é a droga da vez?

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Coluna do Estevão
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Doce açúcar: uma amarga ilusão


Intimamente associado aos aspectos mais doces do cotidiano, o açúcar é um dos pilares gastronômicos das mais variadas sociedades do mundo atual. Aqui, no Ocidente, só para citar alguns exemplos, temos bolos, pudins, chocolate, sorvetes, cafés, molhos e bebidas que, em maior ou menor quantidade, agradam ao paladar com os gostos aos quais todos já se acostumaram.

Até aí, tudo certo. Que mal podem fazer os grãozinhos inofensivamente colocados em tantos alimentos, em tantos lugares, em tantas situações, a tantas horas? A resposta – como grande parte delas – pode ser encontrada em um daqueles dizeres sábios, antigos e sem autores específicos: “a diferença entre o remédio e o veneno é a dose”. Mas... Açúcar é remédio? Em sentido estrito: não. E açúcar é veneno? Em todos os sentidos: se em excesso, sim.

Como praticamente todas as substâncias (inclusive a água), os carboidratos que são açúcares são prejudiciais ao bom funcionamento do organismo se estiverem em quantidades excessivas. Alguns deles são conhecidos desde os primeiros períodos da infância, como as cáries dentárias – lesões aos dentes causadas por nutrientes em excesso na boca, dando substrato para certas bactérias viverem e fazerem estragos bem sérios. Doenças nervosas, problemas renais, problemas no coração e complicações vasculares (como a retinopatia) são mais conhecidos dos diabéticos, problemas esses que também contam com a contribuição do açúcar excessivo no sangue. Além desses, um triste desfile que tem desde hipertensão e derrames cerebrais até amputações. E, é claro, não se pode de jeito algum deixar de mencionar-se a obesidade.

Assumindo cada vez uma proporção de pandemia (com 400 milhões de obesos no mundo), e tida por alguns como parte dos principais desafios de saúde desse século, a obesidade conta com uma triste contribuição dos açúcares, presentes em quantidades desproporcionais nos mais variados – e gostosos – tipos de alimento. Seja pelo custo, pela praticidade ou pela atratividade, cada vez mais nosso modo de vida urbano e de estilo norte-americano nos empurra para médias populacionais de IMC maiores e maiores. Não só no Brasil, não só nos EUA; mas no mundo inteiro.

Vamos, então, aos vilões. Mais precisamente, a um de seus veículos, talvez o principal. O refrigerante. Doces em grandes quantidades, refeições mais do freqüentes em redes de fast-food e outras formas de ingestão excessiva de açúcar não são de maneira alguma pouco importantes. A questão é que o desequilíbrio vivido hoje em dia na questão “açúcar” faz merecer uma séria reflexão sobre o impacto que têm os refrigerantes, seu veículo mais popular. 14 bilhões de litros de refrigerante por ano são bebidos no Brasil, e, nos EUA – a pátria da Coca-cola -, o consumo é 4 vezes maior. Uma simples latinha de 350 ml contém o equivalente a cerca de 10 colheres de chá de açúcar, com calorias suficientes para fazer engordar, segundo estimativas, mais de 6 quilos por ano com consumo diário dessas latinhas.
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Recentemente, nomes importantes da epidemiologia e figuras acadêmicas de destaque chegaram a propor aumentos nos impostos de refrigerantes em certos estados dos EUA a fim de conseguir, desse modo, uma diminuição efetiva do consumo. Além disso, outras propostas incluíam a diminuição expressiva da quantidade de açúcar presente nos refrigerantes, indo das atuais 10 colheres para aceitáveis 3 colheres de açúcar por latinha.

Os níveis recomendados não ficam soltos. Importantes associações e organizações estipularam níveis mais rígidos para o quanto de açúcar é aceitável se ingerir – sendo que esse limite diminuiu consideravelmente nas últimas décadas. A American Heart Association, pela primeira vez na história, definiu limites para o consumo de calorias de açúcar – com apenas 100 e 150 calorias para mulheres e homens, respectivamente. A OMS (Organização Mundial da Saúde), mesmo tendo que denunciar tentativa de inibição por parte da Sugar Association dos Estados Unidos, estabeleceu limites de 10% das calorias diárias sob a forma de açúcar industrializado. Além disso, há recomendações de no máximo quatro ingestões diárias de açúcar na Eurodiet, guia alimentar da União Européia, e, na Alemanha, Bélgica e em parte no México, legislações sobre venda e propaganda de produtos com altos teores de açúcar em escolas e áreas próximas. Grande parte da dificuldade em se estabelecer valores rígidos nas recomendações está no poder do lobby da indústria do açúcar: nos EUA, por exemplo, há amplo financiamento tanto para o partido Republicano quanto para o Democrata, e a força no Senado dos representantes dessa indústria é grande.

Um local onde essa influência do poder do açúcar se manifesta é na área de publicações de estudos científicos. Uma análise feita pelo professor David Ludwig, de Harvard, mostrou que absolutamente todos os artigos analisados (os de maior relevância para a área) que haviam sido financiados pela indústria açucareira aprestaram resultados estranha e absolutamente favoráveis – bem diferente do restante dos trabalhos, que não haviam sido financiados, e que tiveram conclusões mais realistas.

O quanto de açúcar, onde e como são perguntas que serão respondidas nos próximos anos. Contudo, tudo o que há de história ficou – desde as transformações imensas na sociedade até os mais magníficos doces. E, inclusive, ficarão as poesias, entre as quais segue a bela estrofe do poeta Ferreira Gullar sobre o açúcar, citada em uma reportagem da revista Veja:

"Afável ao paladar
Como beijo de moça, água
Na pele, flor
Que se dissolve na boca"

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