quarta-feira, 17 de outubro de 2007

A concentração do conhecimento

Resenha de BARROS, Fernando - A tendência concentradora da produção de conhecimento no mundo contemporâneo (Brasília: Paralelo 15 – Abipti, 2005, 307 p.)
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por: Profa. Maria Lucia Maciel
(IFCS/UFRJ)
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No relatório do Banco Mundial, Knowledge for Development (1999), o seguinte trecho sintetiza de forma aguda o problema atual da concentração do conhecimento:
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Knowledge is like light. Weightless and intangible, it can easily travel the world, enlightening the lives of people everywhere. Yet billions of people still live in the darkness of poverty - unnecessarily.
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Muitos autores têm chamado atenção, nos últimos anos, para a questão da concentração geográfica do conhecimento e para o mito da chamada sociedade do conhecimento (ver nota de rodapé). O maior mérito do trabalho de Fernando Barros neste livro, resultante de sua tese de doutorado, é o de traduzir essa problemática em dados concretos e análises cuidadosas relevantes à realidade dos países periféricos, e especialmente para o Brasil.
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Apoiando-se em fontes de dados trabalhados pelo Observatoire des Sciences et Techniques-OST e baseados em relatórios de OCDE (Principais Indicadores C&T), UNESCO, EUROSTAT e INED, o autor demonstra os altos índices de concentração de investimentos em ciência e tecnologia (C&T), assim como de instituições, de pesquisadores e de sua produção, na América do Norte, na Europa e no Japão. Mas o autor também desagrega os dados por países e por áreas do conhecimento, além de entrar na complexa questão dos resultados em termos de inovação tecnológica, na qual os dados que demonstram a concentração são ainda mais contundentes. Para apoiar sua análise, o autor conduziu ainda uma série de entrevistas com especialistas brasileiros e internacionais dessa área, cujo roteiro encontra-se no anexo do livro.
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O primeiro capítulo apresenta seu quadro teórico de análise da produção e distribuição de conhecimento na atualidade e aponta as principais tendências contemporâneas nesse campo, resultantes da revolução científico-tecnológica dos últimos trinta anos. O segundo descreve quantitativa e qualitativamente como essas tendências se concretizaram nos países mais desenvolvidos. O terceiro faz um panorama da ciência e da tecnologia nos países em desenvolvimento, focando mais especialmente os casos de China, Índia e Brasil. O capítulo seguinte retrata as desigualdades científicas e tecnológicas mundiais no contexto da globalização, mostrando que as distâncias entre países são bem maiores na tecnologia do que na ciência. No último capítulo, o autor desenvolve seu argumento sobre a tendência à concentração do conhecimento no mundo contemporâneo e destaca o papel do Estado nos processos nacionais que contribuem para configurar a atual distribuição geográfica do conhecimento. Nas conclusões, Barros sintetiza seus argumentos e aponta as perspectivas para o futuro.
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Merece especial atenção a análise de séries históricas que se, por um lado, confirmam as origens históricas e estruturais dessa tendência à concentração, por outro também indicam “desvios” interessantes nessa tendência: o primeiro, no período após a segunda guerra mundial; e o segundo, nas três últimas décadas.
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No primeiro caso, houve um movimento de expansão das atividades científicas e tecnológicas de forma menos desigual entre os diferentes estados nacionais. Dessa forma, as contribuições ao desenvolvimento da ciência, ainda que em pequenas proporções, passaram a ter origem mais diversificada. No Brasil, vimos nesse período do pós-guerra um grande esforço institucional e financeiro que gerou, entre outros, o CNPq e a Capes.
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Mas a crise capitalista do final dos anos 1970 e as mudanças ocorridas com o processo de globalização da economia, segundo o autor, afetaram profundamente os países em desenvolvimento, onde as atividades científicas e tecnológicas dependiam basicamente do Estado. Sabemos como os anos 1980 e 1990 testemunharam uma redução no esforço de desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil, cujos efeitos se fazem sentir até hoje em alguns aspectos.
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O segundo momento interessante (só o tempo dirá se é mais um “desvio” da história ou se é uma nova tendência que se afirma) diz respeito às três últimas décadas. Se é verdade, como demonstra Barros, que a distância entre os países ditos centrais e os menos desenvolvidos (como a maioria dos países africanos) continua aumentando, seguindo a tendência histórica, por outro os dados apresentados no livro também indicam uma leve dispersão da produção científica e tecnológica. Com a constatação do papel central de C&T para o desenvolvimento, em meio às radicais transformações que colocam a produção e apropriação da informação e – principalmente – do conhecimento como fatores cruciais dos processos econômicos e sociais no mundo contemporâneo, vários países vêm procurando investir (tanto recursos materiais quanto imateriais) no avanço científico e tecnológico.
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É o caso, por exemplo, dos países que o autor denomina de “intermediários”, como o Canadá, Austrália, Nova Zelândia, entre outros, que conseguiram atingir um grau de capacitação técnico-científica e padrões de desenvolvimento semelhantes aos encontrados nos países líderes. Da mesma forma, é digno de nota o resultado obtido nos saltos qualitativos observados na Coréia do Sul, em outros novos países industrializados (NPI) da Ásia – que já foram chamados de “tigres asiáticos” – e em alguns países membros da União Européia, como Espanha, Finlândia e Irlanda, o que contribui significativamente para uma realidade menos polarizada.
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Mais relevante ainda – para o nosso caso específico, pelo menos – é a ascensão no cenário internacional de países emergentes como China, Índia e Brasil. A tal ponto que o tema do momento nas reuniões internacionais de especialistas da área é o novo conjunto denominado “BRICS” – que reúne as iniciais de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Estes seriam os países de maior desenvolvimento potencial no século XXI, segundo alguns. É claro que há imensas diferenças entre essas cinco configurações sócio-políticas. Sobretudo, talvez, o fato de que Índia e China estão conseguindo avançar muito mais no campo do desenvolvimento tecnológico do que o Brasil, por exemplo, enquanto o nosso país tem tido mais sucesso no avanço científico do que na tecnologia.
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Mas o que me chama mais atenção ao longo de todo o livro e particularmente no relato (e nos dados) desses casos de sucesso é o que eles têm em comum. Tanto nos países “intermediários” quanto nos NPI e nos novos emergentes, o fator crucial que parece alimentar o potencial de “desviar” a tendência é a ação do Estado. Como diz o autor, a mudança ocorre “por meio de políticas incisivas que podem levar a um processo de maior desconcentração”.
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Assim como ocorreu em alguns países no pós-guerra, as mudanças mais recentes observadas por exemplo na Coréia, na China e na Índia foram promovidas por políticas estatais fortes e consistentes, de longo prazo. O Japão, aliás, já tinha demonstrado isso muito antes e de forma contundente. Isso não implica ignorar a ação de forças econômicas presentes em cada sociedade e as correntes de interesses do mercado associadas aos avanços na produção tecnológica – e que ainda não se expressaram significativamente no Brasil. A idéia de Sistema Nacional de Inovação refere-se justamente ao conjunto integrado de esforços públicos e privados nessa direção. Mas os exemplos e os dados mostram claramente que mesmo a inovação tecnológica promovida por interesses privados responde, em grande parte, a estímulos colocados por um ambiente macro-econômico e uma política de estado em que os incentivos à produção justificam os riscos e os esforços – e que também ainda não se expressaram significativamente no Brasil...
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Em suma, apesar da “tendência concentradora” do título do livro, que pode dar a impressão de uma mensagem pessimista do autor, encontram-se também no seu trabalho os caminhos alternativos que, segundo ele, “poderão emergir da práxis social” – e política, diria eu – “e conduzir a outros horizontes”.
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Para concluir, vale a pena acrescentar ainda um comentário, inclusive como sugestão para trabalhos futuros.
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Há, obviamente, contradições inerentes à idéia, muito difundida, de que o conhecimento é cada vez mais accessível e disseminado – ao mesmo tempo em que ele é cada vez mais privatizado e, portanto, mais concentrado. O argumento, que tem raízes clássicas nas teorias que postulam a mudança como sendo gerada e movida a partir das próprias contradições inerentes a cada momento histórico, é produtivo em pelo menos dois sentidos. Em primeiro lugar, ele nos instiga a novas problematizações e perspectivas sobre o nosso tempo que desvendam atores, relações e tensões em muitos casos insuspeitados. Em segundo lugar, as próprias incertezas e instabilidades institucionais características da nossa contemporaneidade podem sugerir os caminhos da ação social e política mencionados por Fernando Barros. Não estamos, evidentemente, em período de estabilidade de instituições, normas e regras consolidadas – muito pelo contrário. Descortinam-se assim iniciativas sociais e políticas inéditas de países e coletividades em todos os níveis (internacional, nacional, local) que indicam possibilidades diversas de estratégias e políticas propícias à mudança.


Nota de rodapé: Ver particularmente CASSIOLATO, LASTRES e MACIEL (org) Systems of Innovation and Development (Edgar Elgar Publ., 2003) e STEHR, N. “Da desigualdade de classe à desigualdade de conhecimento”, Rev. bras. Ci. Soc., 2000, 15(42).

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